Publicado na Folha da Manhã,
Campos dos Goytacazes, 27 de maio de 2016
"De Bom Jesus do Itabapoana a Castelo no século XIX (I)"
"De Bom Jesus do Itabapoana a Castelo no século XIX (I)"
Bacia do Itabapoana
Por Arthur Soffiati
Como eco-historiador, eu gostaria
que os holandeses tentassem implantar uma colônia nos limites da Capitania de
São Tomé e trouxessem para ela cientistas e artistas. Eu gostaria que Alexandre
Rodrigues Ferreira e Georg Langsdorff empreendessem alguma excursão científica
na capitania. Teríamos muita sorte se Humboldt tivesse podido entrar em terras
brasileiras e chagado ao norte/noroeste fluminense e sul do Espírito Santo. A
suprema graça seria a inclusão dessa região nas viagens de Martius e Spix.
Da mesma forma, Darwin bem que
podia ter ultrapassado Macaé e dado uma chegadinha mais adiante. Se esse sonho
ambicioso tivesse se concretizado, contaríamos com muito mais informações sobre
a terra em que vivemos do que as deixadas por Wied-Neuwied e Saint-Hilaire.
Esses dois grandes naturalistas passaram por aqui, mas se restringiram à zona
costeira. O que hoje se denomina noroeste fluminense não foi incluído nos seus
roteiros.
O noroeste fluminense e o interior do sul capixaba continuariam inexplorados não fosse a expedição liderada por Manoel Basílio Furtado, médico mineiro que empreendeu uma viagem científica entre Bom Jesus do Itabapoana e Castelo. Ele deixou informações escritas sobre essa viagem, realizada em 1875, e publicadas em 1884. Do livro, restou apenas um exemplar, mesmo assim incompleto e sem as fotografias que o ilustravam.
Ele está conservado na Fundação
Chico Boticário, na cidade de Rio Novo, Minas Gerais. Foi muito feliz a
iniciativa da Editora Essentia, do Instituto Federal Fluminense, de publicar
uma segunda edição do documento, lançada em 2016. Incluído na coleção “Memórias
Fluminenses”, seu título é “Itinerário da Freguesia do Senhor Bom Jesus do
Itabapoana à Gruta das Minas do Castelo”.
Furtado era médico e não naturalista.
Cabe lembrar que os médicos do
século XIX tinham formação geral e não se especializavam como os de hoje, que
acabam perdendo a noção do todo. De Rio Novo, ele foi a Bom Jesus do
Itabapoana, ponto inicial da expedição. O autor já tinha noção de cadeia
alimentar e ecossistema: "Existe uma relação de utilidade tão recíproca e
contínua entre estes dois reinos da Natureza (vegetal e animal), que não
haveria hoje sobre a terra um só animal se não houvesse um só vegetal e
vice-versa; e como o homem é o supremo elo da cadeia terrestre e aquele que
goza de relações mais íntimas e multiplicadas com os três reinos, segue-se
daqui que não há uma só espécie de vegetal que não concorra imediatamente para
a sua utilidade." Atualmente, os cientistas reconhecem cinco ou mais
reinos, não incluindo os minerais, pois que não vivos. O antropocentrismo da
passagem era comum na época. Aliás, é até hoje.
Como um Rousseau antropocêntrico,
ele escreve “... se tudo que procria, cresce, se conserva e se reproduz é para
o homem, este tem um dever sagrado de fazer dos vegetais o objeto principal de
suas investigações, dos seus estudos e das suas meditações". A excursão
começou em julho de 1873. O que mais chama nossa atenção, no relato, é a
cobertura florestal do itinerário traçado por Furtado. Ele e seus companheiros
estavam percorrendo a zona serrana baixa do noroeste fluminense e sul capixaba
em direção às terras altas do Caparaó.
O autor não menciona claramente
as ruínas portuárias deixadas por Pero de Gois no século XVI, mas confirma que
o estirão do Rio Itabapoana que vai do Porto da Limeira até a foz, numa
extensão de 60 quilômetros, era navegável. Como afluentes do Itabapoana ele
anotou os Rios Preto, São João, Ribeirão do Veado, Varre-Sai, Pirapitinga,
Barra Alegre, São Pedro, Muqui do Sul e Muribeca. As principais cachoeiras no
seu curso: Bálsamo, da Fumaça, do Inferno, de São Pedro, do Queimado.
As frondosas e contínuas matas
eram formadas por ipê-peroba, pau-ferro, várias espécies de jacarandá, violeta,
vinhático, cedro, pau-brasil, pau-pereira, copaíba, ipecacuanha etc. Ele não
fez um inventário sistemático das espécies vegetais nativas, que deveriam ser
muito mais numerosas.
Num arroubo semelhante ao de
Wied-Neuwied em vários pontos da sua excursão, Furtado se pergunta emocionado
ao contemplar as florestas: “Não será este o Paraíso perdido, ocultado debaixo
destes frondosos e sombrios bosques?” E, numa atitude de indignação, arremata:
“O que saiu das mãos do Criador é esplêndido, maravilhoso; o que é obra do
homem é mesquinho, raquítico.”
Tudo indica que Furtado se filiava à corrente de desenvolvimento que predominou no Brasil durante o século XIX, invadindo o século XX até 1958, quando criada a Fundação Brasileira para Conservação da Natureza.
Essa corrente ancorava na Escola
Fisiocrata, de origem francesa e que, no Brasil, tinha como mais conhecido
representante José Bonifácio de Andrada e Silva. Tal corrente pugnava por um
desenvolvimento pela agropecuária protegendo extensões significativas de mata,
abolindo a escravidão e integrando as nações indígenas. Ela corresponderia hoje
ao que chamamos compatibilismo.
Não por acaso, ele dedica um capítulo inteiro à importância do cultivo do café para a integração do Brasil ao mundo, já marchando para o processo de globalização, assim como Wied-Neuwied atribui esse papel ao boi. No seu trajeto, Furtado examina lavouras de café, cana, algodão, fumo, milho, arroz, mandioca, laranja, limão. Ao mesmo tempo, lamenta que terras estejam abandonadas ou usadas por lavouras inadequadas. Condena o descaso dos agricultores permitindo a proliferação da erva de passarinho e da saúva, assim como condena a monocultura e defende o desenvolvimento da agropecuária, nas terras que atravessa, para abastecer o mundo.
Prof. Arthur Soffiati |
Nesse sentido, conjectura: “A
canalização do Itabapoana, da Limeira até a Barra, ofereceria um porto abrigado
e seguro, suficientemente vasto para os navios ultramarinos que viessem receber
os cafés, seguindo diretamente para os países consumidores...” Pero de Gois
teve ideia parecida. Mas esse desenvolvimento não podia ser predatório,
destruindo florestas indiscriminadamente, sobretudo com o fogo:
“Lastimamos que
a maior parte dos fazendeiros não esteja de acordo com essa grande verdade, o
que será de muito funesta consequência para os seus vindouros (...) Por toda a
parte o homem fica abismado na contemplação da vandálica degradação das nossas
matas primitivas pelo fogo e pelo machado da civilização!”
Talvez isso aconteça porque “...
as matas foram sempre consideradas como antro de assassinos e criminosos...”.
Ele encontrou bois grandes e gordos criados nas matas sem fornecimento de
alimentos. O processo de destruição já estava em curso, e Furtado o denuncia.
Embora censure com veemência os maus tratos aos índios, ele endossa o
tratamento dispensado aos escravos de origem africana.
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